quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A CHAVE

E de repente

o resumo de tudo é uma chave.

A chave de uma porta que não abre

para o interior desabitado

no solo que inexiste,

mas a chave existe.

Aperto-a duramente

para ela sentir que estou sentindo

sua força de chave.

O ferro emerge de fazenda submersa.

Que valem escrituras de transferência de domínio

se tenho nas mãos a chave-fazenda

com todos os seus bois e os seus cavalos

e suas éguas e aguadas e abantesmas?

Se tenho nas mãos barbudos proprietários oitocentistas

de que ninguém fala mais, e se falasse

era para dizer: os Antigos?

(Sorrio pensando: somos os Modernos

provisórios, a-históricos…)

Os Antigos passeiam nos meus dedos.

Eles são os meus dedos substitutos

Ou os verdadeiros?

Posso sentir o cheiro do suor dos guarda-mores,

o perfume- Paris das fazendeiras no domingo de missa.

Posso, não. Devo.

Sou devedor do meu passado,

cobrado pela chave.

Que sentido tem a água represada

no espaço onde as estacas do curral

concentram o aboio do crepúsculo?

Onde a casa vige?

Quem dissolve o existido, eternamente

existindo na chave?

O menor grão de café

derrama nesta chave o cafezal.

A porta principal, esta é que abre

sem fechadura e gesto.

Abre para o imenso.

Vai-me empurrando e revelando

o que não sei de mim e está nos Outros.

O serralheiro não sabia

o ato de criação como é potente

e na coisa criada se prolonga,

ressoante.

Escuto a voz da chave, canavial,

uva espremida, berne de bezerro,

esperança de chuva, flor de milho,

o grilo, o sapo, a madrugada, a carta,

a mudez desatada na linguagem

que só a terra fala ao fino ouvido.

E aperto, aperto-a, e de apertá-la, ela se entranha em mim. Corre nas veias.

É dentro em nós que as coisas são,

ferro em brasa – o ferro de uma chave.
Por: Carlos Drummond de Andrade

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