quarta-feira, 2 de outubro de 2013

É menino

É menino, a cara do pai, a cara da mãe, esse menino vai ser safado, só quer saber das meninas, só brinca com as meninas, nem parece menino, mas é menino, tem pipi de menino, tem que botar ele no futebol, não é possível que ele odeie futebol, todo menino gosta de futebol, ele ainda vai descobrir que gosta, tem que levar ele pro estádio, ele tem é que passar mais tempo com o pai, isso é falta de pai, ele tem é que sair da aba da mãe, ele tem é que ir pra uma escola só de meninos, isso é falta de porrada, é impressão minha ou desde que ele entrou na escola de meninos ele tá ainda mais menina, acho que ele passa tempo demais com meninos, daí só quer saber de meninos, deve ser isso, é falta de carinho, é falta de mulher, acho que ele tem que passar mais tempo com as meninas, ele tem é que se apaixonar por uma menina, ele acha que gosta de meninos porque ainda não encontrou a menina certa, se ele só se dá bem com meninas deve ser porque gosta tanto de meninas que não consegue sair de perto delas, já saquei qual é a dele, é muito esperto, finge que é menina pra se aproveitar delas, esses são os piores, também não precisava se vestir de menina, acho que ele tá exagerando, coitado dos pais dele, o que é que eu vou falar pros seus avós, acho que o seu avô se mata, pena que ainda não dá pra mandar pro Exército, tem que botar no escoteiro que dali ele vai direto pro Exército, acho que nem o escoteiro vai querer saber dele vestido desse jeito, não acredito que ele quer mudar de nome, isso tem que resolver na terapia, deve ter sido abusado na infância, tá querendo agredir os pais, espera que essa moda passa, hoje em dia a pessoa é obrigada a ser bicha, parece que tem um revolver na cabeça da criançada, é a ditadura gay, tá demorando a passar essa moda, cresceu peito nele ou isso é uma meia, onde foi que os pais erraram, ou quem errou foi a sociedade, a culpa é da televisão, a culpa é da escola, a culpa é de algum tio que deve ter abusado dele, e não é que ele dá uma mulher bonita, nem parece homem, já mandei meu marido sair de perto dele, desculpa, eu me recuso a chamar ele de ela, eu vi ele crescer, ele tem um negócio debaixo da saia, ele é menino, ele sempre vai ser menino, essas coisas a gente não muda, essas coisas a gente não muda, essas coisas não mudam a gente, essas coisas a gente é, a gente é o que a gente for, é menina.


Por Gregório Duvivier

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Mil vezes não amar que amar sem retribuição.

Amar


“Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados amar? Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o cru, um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.” Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Só a antropofagia nos une. Junio nesse momento está comendo e sendo comido por bacantes, por sátiros, por índios canibais, por índios antropófagos. Junio, um artista! O artista é fiel ao amor, à libido, à paixão. Jamais a uma pessoa. Ele não traz a mais o apetite, a fome, o amor, o tesão. O artista come de tudo, os homens, as mulheres, tudo o que lhe abre o apetite porque a vida é apetite puro. Como dizia Blanche Debois, o oposto da morte é o desejo e o artista deseja mais, mais, sempre mais...

Zé Celso

terça-feira, 30 de julho de 2013

Carta a um amigo hetero.

Olha só. Nós somos diferentes.


Tudo bem. Já sei o que você vai dizer: mas nós somos todos diferentes. Ou então que nós temos um monte de coisas em comum, outras coisas em que somos bastante iguais. É claro. Mas eu não to aqui pra falar de todas as diferenças – nem das semelhanças. Tô falando dessa, essa aqui, essa agora. OK?

Portanto, nós somos diferentes. E quando digo somos, digo assim mesmo, no plural. Eu sou diferente de você, do mesmo jeito que você é diferente de mim. Não vá pensando aí que porque você tá hoje no topo dessa hierarquia social que eu sou O diferente, o diferente de VOCÊ. Porque eu não reconheço essa tua hegemonia, me rebelo contra essa tua norma e embora saiba que ela existe e o quanto ela é forte, trabalho todo dia contra ela. E não posso, nem quero, nem vou, reconhecê-la no discurso. Portanto, somos diferentes sim. Assim. No plural. Eu sou o seu outro. E você também é o outro de mim.

Você então vai começar a falar sobre o quanto nós somos parecidos, em tantas coisas. Bom, o negócio é o seguinte: Eu não quero ser igual a você. Não quero ser grosso, nem soar arrogante, mas vamos parar com esse monte de comparações. Então não venha com essa história de que nós amamos igual, nós nos relacionamos igual, nós sofremos igual. Porra nenhuma! Que é isso!

Nós não sofremos igual. Cada sofrimento é particular. E por mais que você já tenha sofrido com outros preconceitos, a discriminação não é algo que se acumule ou que se pontue. Cada um vai experimentar ela de um jeito. Por outro lado, eu também acho, pelo menos desconfio, que você também sofreu um bocado por conta das mesmas regras e normas que me fizeram viver tanta angústia. Mas nós vivemos lados diferentes dessa história. Não dá simplesmente pra dizer que é a mesma coisa.

Nós não nos relacionamos igual. Eu não sei se eu quero casar. Eu quero ter o direito de casar, o que é bem diferente. Mas também quero ter o direito de não casar! De querer viver junto, ou de ser solteiro a vida inteira, ou de ter uma relação por interesse, ou só por amor, ou só por sexo, a um, a dois, a três. Eu quero ter o direito de adotar um filho ou uma filha, ou de fazer um ou uma pelos meios que já existem. Mas também quero ter o direito de não querer ter filhos! De gastar todo o meu dinheiro comigo mesmo, numa vida cheia de luxúria e frivolidade!

Do mesmo jeito: Nós não amamos igual!  Não tem como! Cada um ama de um jeito. Para alguns amor é apego, pra outros carência, pra outros entrega, pra outros cobrança, pra outros liberdade, pra outros compromisso. Então como assim “nós amamos igual”? Quem disse que só tem um jeito de amar? Quem disse que esse teu jeito aí é o certo? Quem disse que eu quero amar pra vida toda? Ou só uma pessoa? Ou juntar amor, sexo e conta pra pagar?

Além disso, não é bem de amor que a gente tá falando. Esse quadro quem pintou foi você. Afinal, quando você fala de amor, não precisa falar daquelas partes, daqueles pequenos detalhes, meio desagradáveis, do tipo que não se fala quando a nossa avó tá na sala. Mas não adianta. Entenda uma coisa, meu bem: além de todas as coisinhas bunitinhas, nós estamos falando é de sexo! É, isso mesmo, de paus, picas, bundas, bocas, peitos, pelos, pés, dedos, sêmen, couro, cordas, tapas, dois, três, quatro, quantos couber! Estamos falando de chupar, dar, comer, bater, lamber, cheirar, fuder, gozar!

Quantos quartinhos escuros você já frequentou na vida? Quanta pegação já fez num banheiro da escola, do shopping, da rodoviária? Quantas sacanagens você já fez em becos escuros, praias, casas abandonadas? Saunas? E não vá achando que tudo isso vai sumir, lentamente desaparecer, a medida que eu possa simplesmente viver a vida do seu jeito. Não, gato. Tudo isso tem uma beleza própria, um gosto próprio. Tudo bem, é verdade, eu trepava no beco porque não podia namorar na pracinha. Mas quem disse que quando eu puder, de verdade, namorar na pracinha, eu vou dispensar o beco?

Olha só, meu querido: Eu dou a bunda. E gosto. É verdade, você também poderia dar. E poderia, sem dúvida, aprender a gostar. Como eu também poderia aprender a delícia de comer uma mulher. Nossa diferença é claramente construída. Uma diferença cultural mesmo. E aí? Quer tentar? Se você tentar eu tento, juro...

Ah, e não se esqueça: Eu dou pinta! Isso  mesmo! Desmunheco, falo fino, dou gritinho, ando rebolando, gemo, bato cabelo, faço carão, penero, dô close, faço a egípcia, faço a uó. Porque aqui, meu amor, quem tem medo de parecer com mulher é você. É você quem acha que tudo isso é coisa de mulher. E mesmo que eu discorde, e ache que esse teu pensamento binário de macho e fêmea é um bocado limitado, eu não tenho medo nenhum do feminino. Se isso te desconforta, te incomoda, é porque você ainda acha que ser mulher, ou parecer com uma, é algo vergonhoso, pejorativo, que diminui, que inferioriza. Pra mim não é. Quando você me xinga de mulherzinha - e como pode mulher ser um xingamento? - pra mim é elogio. Eu sou dessas, meu amor!

Talvez você não ache a minha linguagem apropriada. Mas é isso, falar é como dar o cú. É um ato político. Não posso abrir mão. Nossa língua é a mesma, mas os usos são diferentes. As palavras que você acha feias são as palavras que seus amigos inventaram pra falar mal de mim. Todas elas! Mas se eu fugir delas, é como se eu estivesse reconhecendo o medo, o medo do seu dedo, que aponta pra mim, e me culpa. Mas pra mostrar que eu já não tenho medo, eu uso essas mesmas palavras, que pra você são ofensas, e as transformo no meu nome, escrevo elas na minha carteira de identidade, faço delas a bandeira que eu vou levantar na rua.

Portanto, meu amor, aceita. Nós somos sim: viados, bichas, boiolas, monas, baitolas, pederastas, sodomitas. Nós damos o cú. Nós chupamos pau. E comemos também (não se esqueça!). E botamos pra chupar. E fazemos muitas outras coisas, que talvez você julgue inapropriadas, estranhas, nojentas, mas que eu acho uma delícia! Eu não sou limpinho. Não sou higiênico. Não sou essa pessoa boa, inteligente, amiga e maravilhosa. Sou legal e escroto como todo mundo - e como só eu sei ser, claro.

Entenda uma coisa, meu amigo: eu não quero ser igual a você. O que não quer dizer que eu quero ser diferente. Já passei dessa fase.  Simplesmente eu não preciso, isso mesmo, eu não preciso me sentir semelhante a você para me sentir bem comigo mesmo. Entendeu, darling? Porque nesse teu sorriso de bom moço, complacente e carinhoso quando diz, 'nós somos todos iguais' o que no fundo você quer dizer é que pela sua bondade e cabeça feita, você me deixa entrar no seu clube, você me deixa vestir a sua camisa, você me deixa dizer que eu sou seu amigo. Mas desculpa, amigo, eu não preciso ser seu amigo. Nós até podemos ser, sem dúvida, e descobrir um monte de coisas pra fazer e falar sobre. Mas eu não preciso da sua aceitação. Não preciso do seu afeto. Não preciso da sua condescendência. Se sermos iguais significa eu me tornar parecido com você, muito obrigado, desquenda, beijo, me liga.

Se você quer me reconhecer, me reconheça como igual. E como diferente. Nós não precisamos nos gostar. Nós não precisamos nos amar. Nós simplesmente precisamos aprender a conviver. Talvez nem sempre dê pra gente entrar num acordo. Talvez em alguns momentos a gente caia na porrada. Mas se for assim, que seja uma briga justa, e não um genocídio. Que seja uma porrada, e não 49 facadas. Que seja uma luta. E não um crime. Se as nossas diferenças se tornarem em algum ponto tão incompatíveis, que você saiba me reconhecer como adversário à altura, e eu idem. E vamos à disputa. Afinal, quem disse que democracia é consenso? Muito pelo contrário. Democracia é apenas um jeito um tanto mais justo da gente brigar. E além disso, minha raiz não me deixa pensar diferente, não é a harmonia que faz as coisas andarem. É justamente a discórdia! É o desequilíbrio que faz a gente aprender. É o conflito que move a própria História.

Mas pra você não me achar completamente antipático, vamo lá, te convido pra tomar uma cerveja. A gente senta, bate um papo, e quem sabe não aprende um com o outro, sobre um e sobre o outro. Só não vá beber demais, porque aí, sabe come que é... eu não me responsabilizo...

SOBRE SANTAS E VADIAS

Como comentar a destruição da imagem da santa na Marcha das Vadias sem cair no senso comum?

A minha experiência com a Igreja Católica foi muito marginal. Eu cresci em família kardecista. Nada de missa, hóstia, confissão, nem velho testamento. Apesar de muitos espíritas ainda conservarem um bocado do ranço moralista, esses não eram maioria lá em casa. Eu fui ensinado, desde cedo, a olhar para a Igreja com uma certa condescendência arrogante (bem comum entre kardecistas), como quem olha para um adolescente, às vezes pentelho, às vezes engraçado, que ainda não entendeu direito as coisas da vida. Logo logo eu mesmo me dei conta do quanto o espiritismo também podia vir acompanhado de boas doses de estupidez e egocentrismo. Mas aí já é outra história.

Mas, se na minha vida pessoal a Igreja parecia irrelevante, para muitas outras pessoas ela teve um outro peso. E peso aqui não é só uma palavra pra terminar a frase. Conheci mulheres (e homens) que passaram (e passam) a vida atormentadas pelo terrorismo religioso. Uma marca que ficou no corpo. No jeito de sentar, de falar, de trepar e sentir prazer, nos projetos de vida.

Conheço mulheres que foram julgadas quando se separaram. Mal faladas porque fizeram sexo sem compromisso. Excomungadas porque fizeram um aborto (e que se culpam até hoje por isso). Mulheres que introjetaram um controle do corpo e uma percepção tão pecaminosa do sexo que até hoje não conseguem gozar direito. Mulheres atormentadas em intermináveis almoços de família onde todo mundo só quer saber quando ela vai arrumar um marido. Mulheres pra quem manter a "família" (leia-se: casamento heterossexual com filhos) era tão importante que elas abriram mão dos estudos, da carreira, que dirá da felicidade (em alguns casos até mesmo da sua própria dignidade, quiçá da sua integridade física).

Mas o terrorismo religioso não atinge só elas. Tenho amigos gays que passaram anos sendo torturados pela culpa e pelo pecado. Alguns foram expulsos de casa. Alguns excluídos dos círculos de amigos ou dos grupos de trabalho da Igreja. Outros passaram até por tratamentos de reversão (que visivelmente não funcionaram...). Outros até hoje têm medo de contar. Boa parte segue sendo ignorada pela família. Uns tantos foram finalmente acolhidos pelos parentes, mas lhes reservaram aquela cadeira da mesa onde sentam os dignos da compaixão, do lado do primo drogado e da tia que não soube criar os filhos direito.

Pra quem é criado fora da tradição cristã, stricto sensu, pode parecer (como parece ainda pra mim) muito difícil entender o peso que esse discurso tem sobre a vida de uma pessoa. Imagine o que significa realmente acreditar no inferno. Realmente acreditar no pecado. Realmente acreditar que pelo jeito como você sente prazer, você pode ir parar nos braços do diabo por toda a eternidade. Ou mesmo que você não tenha uma fé assim tão medieval, imagine que a cada transa, beijo ou mesmo mera punheta ou siririca, depois do prazer lhe venha uma sensação horrível de culpa, culpa pela certeza de que você ofendeu não só sua mãe, sua sociedade, mas o próprio deus que te deu a vida. É nesse nível.

Isso não é pouca coisa. É dor que deixa marca pro resto da vida. Porque religião não é como TV. Não dá simplesmente pra mudar de canal. Porque tem a ver com o jeito que você aprendeu a entender o próprio mundo. A enxergar você mesmo e a projetar toda a sua vida. E mesmo depois que a gente manda o mundo inteiro à merda e parte em busca de outras filosofias de vida, essa marca continua lá, em algum canto, latejando, incomodando, feito farpa no dedo, caco de vidro no pé.

Isso quer dizer que sim, muita gente tem muitos motivos pra não ter nenhum respeito pela Igreja Católica. Como cobrar respeito por alguém que lhe fez tanto mal? Como cobrar respeito por alguém que segue achando que pode mandar na sua vida? E na vida de um país inteiro?

A imagem da santa é um símbolo. Símbolo do sagrado, pra alguns. Símbolo da opressão, pra outros. Eu jamais quebraria uma. Fácil pra mim. Mas posso entender p e r f e i t a m e n t e as dezenas de razões que tantas e tantas pessoas teriam pra despedaçar uma nossa senhora.

Há quem fale em tolerância religiosa. Wow! Como assim??? Vão falar isso pro Papa! Porque é a intolerância religiosa cristã que até hoje embarreira políticas públicas de saúde da mulher, de enfrentamento à Aids, de reprodução assistida e planejamento familiar, de combate à homofobia na escola, de reconhecimento de transexuais, de liberdade pros maconheiros, de dignidade pra prostitutas, etc, etc, etc.

Há quem compare a quebra da santa aos crentes que invadem terreiros de umbanda e destroem as imagens. Não, não, não, moço. Quando evangélicos arrebentam um centro, eles são os opressores, os históricos e violentos opressores. Aqui, quebrar a santa pode ser um ato de revolta de quem passou a vida tomando porrada, como um grito dos excluídos. A reação violenta do oprimido não pode ser comparada à sistemática e estabelecida violência do opressor.

A gente pode discutir se essa foi uma boa estratégia política. Vai agregar mais gente? Provavelmente não. As pessoas efetivamente entenderam o recado? Provavelmente não. Isso vai ser usado pelos conservadores pra desqualificar (mais?) a marcha? Certamente que sim.

Mas faz tempo que eu já deixei de acreditar que existe uma resposta certa. Já desisti de tentar convencer as pessoas daquilo que eu acho que é o caminho certo. Pelo simples fato de que eu posso estar absolutamente equivocado. Hoje eu acho que o movimento social precisa ser plural. E divergente. Se todo mundo concordar e agir do mesmo jeito, aí fudeu de vez. Portanto, talvez seja bom mesmo que algumas pessoas quebrem umas santas. Talvez seja bom mesmo que alguns manifestantes arrebentem umas vidraças. Talvez seja bom até mesmo que num momento de exaltação alguns vândalos botem fogo em certas assembleias legislativas... Eu não vou quebrar um banco, não vou invadir o Itamaraty ou subir no teto do Congresso. Eu sou cagão demais pra isso. Mas agradeço que existam doidos que topam essas coisas, porque eles forçam a barreira do senso comum de uma forma que eu nunca conseguiria. São essas bichas malucas, de calcinha enfiada e santa na mão, que me fazem pensar se eu não estou sendo uma bichinha comportada demais, legalista demais, medrosa demais, burguesa demais.

É bom que radicais e moderados convivam num mesmo movimento (e eu to mais pros primeiros, que fique bem claro). Dá mais consistência. Alimenta a reflexão crítica. Faz o tempo todo a gente repensar os nossos passos. Quando todo mundo anda igual, ninguém precisa justificar porque tá indo naquela direção. Como querer uma política que reconheça a diferença se não formos capazes de agir, politicamente, na diversidade?

Não sei no que vai dar - se é que vai dar em alguma coisa. Não sei se algumas pessoas vão se afastar da marcha por causa disso. Não sei se outras vão vir justamente por esse motivo. Só sei de uma coisa: se a porrada estancar, se o pau comer, se o bicho pegar, se o bonde passar e eu olhar pro lado, se as pontes de diálogo ficarem inviáveis, se eu tiver que escolher um lado, meu amigo e minha amiga, entre santas e vadias, eu não tenho dúvida. Certamente eu fico com as vadias...

ALEXANDRE BORTOLINI

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A CHAVE

E de repente

o resumo de tudo é uma chave.

A chave de uma porta que não abre

para o interior desabitado

no solo que inexiste,

mas a chave existe.

Aperto-a duramente

para ela sentir que estou sentindo

sua força de chave.

O ferro emerge de fazenda submersa.

Que valem escrituras de transferência de domínio

se tenho nas mãos a chave-fazenda

com todos os seus bois e os seus cavalos

e suas éguas e aguadas e abantesmas?

Se tenho nas mãos barbudos proprietários oitocentistas

de que ninguém fala mais, e se falasse

era para dizer: os Antigos?

(Sorrio pensando: somos os Modernos

provisórios, a-históricos…)

Os Antigos passeiam nos meus dedos.

Eles são os meus dedos substitutos

Ou os verdadeiros?

Posso sentir o cheiro do suor dos guarda-mores,

o perfume- Paris das fazendeiras no domingo de missa.

Posso, não. Devo.

Sou devedor do meu passado,

cobrado pela chave.

Que sentido tem a água represada

no espaço onde as estacas do curral

concentram o aboio do crepúsculo?

Onde a casa vige?

Quem dissolve o existido, eternamente

existindo na chave?

O menor grão de café

derrama nesta chave o cafezal.

A porta principal, esta é que abre

sem fechadura e gesto.

Abre para o imenso.

Vai-me empurrando e revelando

o que não sei de mim e está nos Outros.

O serralheiro não sabia

o ato de criação como é potente

e na coisa criada se prolonga,

ressoante.

Escuto a voz da chave, canavial,

uva espremida, berne de bezerro,

esperança de chuva, flor de milho,

o grilo, o sapo, a madrugada, a carta,

a mudez desatada na linguagem

que só a terra fala ao fino ouvido.

E aperto, aperto-a, e de apertá-la, ela se entranha em mim. Corre nas veias.

É dentro em nós que as coisas são,

ferro em brasa – o ferro de uma chave.
Por: Carlos Drummond de Andrade

As contradições do Corpo


Meu corpo não é meu corpo,

é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.

Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.

Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha de minha mente.
Inocula-me seus patos,
me ataca, fere e condena
por crimes não cometidos.

O seu ardil mais diabólico
está em fazer-se doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.

Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna,
integrane do meu Id,
ofuscadora da luz
que aí tentava espalhar-se.

Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou que deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas células impregna,
do meu mutismo escarnece.

Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.

Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.

Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.

Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto.

Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais que dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo.

Por: Carlos Drummond de Andrade


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Nada contra




Não tenho nada contra homofóbicos. Eu, inclusive, tenho muitos amigos que são. O problema é que tem uns homofóbicos escandalosos, que não conseguem ser discretos. Ficam dando pinta que não gostam de gay, sabe? Tudo bem ser uma pessoa rancorosa e preconceituosa, mas não em público. Entre quatro paredes e bem longe de mim, tudo bem. Nada contra mesmo.
É impressionante o quanto eles se acham no direito de ficar com pouca vergonha na frente de todo mundo. Outro dia ouvi um cara dizer, em plena luz do dia e para quem quisesse ouvir, que “gay é abusado, mexe com homem na rua mais do que homem mexe com mulher”. Acredita? Mas já vi e ouvi coisas piores. “Tenho nojo de homem se pegando” ou “essas menininhas que se beijam não são bissexuais coisa nenhuma, só querem chamar atenção dos homens” ou ainda “te sento a vara, moleque baitola”, e por aí vai. E se alguém critica, logo apelam para “ah, foi só uma piada” ou “é a minha liberdade de expressão” ou ainda “está na Bíblia”. O horror, o horror.
Ser homofóbico é uma opção, mas ninguém tem a obrigação de aceitar, né. É muito constrangedor ver alguém olhando feio para duas pessoas do mesmo sexo se beijando. Como eu vou explicar para os meus filhos que existe gente intolerante? O pior é que nem na escola as crianças estão a salvo. Querem ensinar nossos filhos a serem homofóbicos, imagina! Quando você percebe, já é tarde demais: uma amiga minha foi chamada pela diretora porque o filho foi pego espancando um colega no intervalo. Tudo porque o rapaz era gay. Minha amiga, coitada, não aguentou a decepção de ter um filho homofóbico. Ela diz que é só uma fase, que vai passar. Por garantia, levou o menino no psicólogo.
Acredite, homofobia tem cura. Soube de uns casos de conversão que parecem até milagre. Em um dia, a pessoa estava lá, odiando gays, militando contra o direito dos homossexuais ao casamento civil, fazendo marcha pela família e tudo o mais. Mas com um pouquinho de empatia e bom senso, eles começaram a ver que não tinham nada que se meter com a sexualidade dos outros. E como o respeito é todo-poderoso e misericordioso, os ex-homofóbicos viram que os gays eram boas pessoas e também mereciam os mesmos direitos. Hoje dão testemunho de tolerância.
Murillo Chibana
Agora, tão preocupante quanto homofóbicos exibidos e sem-vergonha são aqueles que não se assumem. Aqueles que não saem do armário, que se fazem de pessoas normais e sem ódio no coração, mas que, no fundo, no fundo, também são fiscais de cu alheio. Pensa comigo: você sai com uma pessoa dessas, sem saber da opção de ignorância dela, e começam a pensar que você também é homofóbico, igual a ela. E todos sabemos que homofóbicos são abominações, ninguém quer ser confundido com um deles. Além disso, onde enfiar a cara quando eles resolverem se revelar e soltarem um “odeio viado” assim, do nada?
Mas não me leve a mal. Não tenho nada contra os homofóbicos, apenas não concordo com a homofobia. Essa doença quase sempre vem acompanhada de outros preconceitos, como o machismo e o racismo. É um caminho sem volta. Fico triste de ver tantos jovens se perdendo nesse mundão de ódio gratuito. É por essas e outras que prefiro ter um filho gay a um filho homofóbico. Ah, você quer saber se eu vou aceitar e amar um filho que virar homofóbico? Como alguém já disse por aí, eles não vão correr esse risco; vão ser muito bem educados.

Por Aline Valek

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Se eu fosse você



O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranqüila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: "Se eu fosse você" A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção. Todos reunidos alegremente no restaurante: pai, mãe, filhos, falatório alegre. Na cabeceira, a avó, com sua cabeça branca. Silenciosa. Como se não existisse. Não é por não ter o que dizer que não falava. Não falava por não ter quem quisesse ouvir. O silêncio dos velhos. No tempo de Freud as pessoas procuravam os terapeutas para se curarem da dor das repressões sexuais. Aprendi que hoje as pessoas procuram os terapeutas por causa da dor de não haver quem as escute. Não pedem para ser curadas de alguma doença. Pedem para ser escutadas. Querem a cura para a dor da solidão. Acho bonito o taoísmo, filosofia oriental. Para saber como ele é basta ler os poemas de Alberto Caeiro. O taoísmo é um jeito de olhar para o mundo. São muitos os jeitos de olhar para o mundo. Cada jeito, cada mundo. O taoísmo diz que o mundo é feito de encaixes. Tudo vem aos pares. O que não tem par não existe. Tudo é macho e fêmea: yang, yin. Quando as duas partes do par se encaixam faz "dac" - e a felicidade acontece. Para haver encaixe é preciso que cada parte seja incompleta. Se as partes fossem completas os encaixes não seriam possíveis nem necessários. Como num quebra-cabeça. Cada peça tem de ter um buraco. Esse buraco é para nele se encaixar um "pleno" da outra peça. Se tal buraco não existir, o encaixe não pode acontecer. O quebra-cabeça fica frouxo, solto, desmancha. Mas não acredite nessa palavra "pleno", que usei. Usei por falta de outra. "Pleno" sugere algo completo, em que nada falta. Mas a verdade é outra. Todo "pleno" é um buraco visto pelo avesso. Quando o buraco e o pleno se juntam acontece o encaixe. (Quem já montou quebra-cabeça sabe do prazer quase erótico que se sente ao fazer uma peça se encaixar na outra. Como se fosse uma metáfora sexual. Confirmação do taoísmo.) Viver é montar um quebra-cabeça. Viver é procurar encaixes. Acho que os taoístas aprenderam isso observando a boca de um nenenzinho sugando o seio da mãe. A boca é um vazio. Sem nada saber ela já sabe sobre os encaixes. Suga o vazio. Seus movimentos rítmicos são a primeira forma de oração, sem palavras. Oração é o vazio que espera. A boca vazia ora pelo "pleno" que a satisfará: o seio da mãe. Mas o "pleno" do seio da mãe é também oração: quer uma boca que o sugue. Quando boca e seio se encontram o encaixe acontece. É a felicidade. O vazio de um é o pleno do outro. O vazio de um é a felicidade do outro. Assim é o amor. A tristeza amorosa é o vazio desejando o pleno. Sócrates inventou um mito para explicar o amor. Disse que Eros nasceu do casamento entre a "Pobreza" e a "Plenitude". O amor é um buraco na alma. Quem ama é pobre. Falta alguma coisa. Peça desencaixada do quebra-cabeça. O sentimento amoroso é a nostalgia pelo pedaço que me falta, "pedaço arrancado de mim". Assim são o masculino e o feminino. O masculino é o pleno que ora pelo vazio que o abraçará. O feminino é o vazio que ora pelo pleno que nele se encaixará. Quando os amantes se abraçam e as peças se interpenetram, os corpos se encaixam, como no quebra-cabeça. Todo ato de amor é uma realização efêmera de uma unidade original perdida. Assim são o yang e o yin, o pleno e o vazio, o seio e a boca, o masculino e o feminino, a fala e a escuta. A fala é masculina: o pleno, sêmen, semente, penetração (podere, em latim, quer dizer cavar), ejaculação. Segundo o Aurélio, essa palavra, ejaculação, que é usada normalmente para designar o jato de esperma, significa também "proferir, dizer em voz alta". Ejacular esperma e falar são a mesma coisa. O ouvir é feminino. O pênis ereto é uma pobreza. É uma súplica, uma oração por uma vagina que o acolha. A semente, para germinar, precisa de um buraco na terra que a acolha. A fala é pobre, falta. Procura o vazio do ouvido. A ejaculação da fala, masculina, acontece num momento. Mas a germinação da escuta, feminina, demanda tempo e silêncio. Para ouvir não basta ter ouvidos. É preciso parar de ter boca. Sábia, a expressão: "Sou todo ouvidos". Todo ouvidos; deixei de ter boca. Minha função falante, masculina, foi desligada. Não digo nada. Nem para mim mesmo. Se eu dissesse algo para mim mesmo enquanto você fala seria como se eu começasse a assobiar no meio de um concerto. Faço, para ouvir você, o mesmo silêncio que faço para ouvir música. Vou agora lhe revelar o segredo da escuta. Quando era iniciante na arte da psicanálise tratava de prestar a maior atenção naquilo que o cliente me estava dizendo. Levou tempo para que eu percebesse que quem presta muita atenção no que é dito não consegue escutar o essencial. O essencial se encontra fora das palavras. Fernando Pessoa, essa distração dos deuses, sabia disso e escreveu. Está num poema que ele dirigiu a um poeta. O poeta é um falador. Constrói objetos com palavras. A esse poeta, cujo negócio é falar, ele diz: Cessa o teu canto. Cessa, porque enquanto o ouço, ouve a uma outra voz como que vindo nos interstícios do brando encanto com que o teu canto vinha até nós. Ouvi-te e ouvi-a No mesmo tempo E diferentes Juntas a cantar. E a melodia Que não havia Se agora a lembro, Faz-me chorar. Preste atenção no que está escrito. Fernando Pessoa diz que a fala tem duas partes. A primeira são as palavras que são ditas: a letra. A segunda é uma melodia que se faz ouvir nos interstÍcios da fala: a música. A letra é coisa do consciente, cerebral. A música é coisa do corpo, inconsciente. Aquilo a que a psicanálise dá o nome de inconsciente é a música do corpo. Quem diz a letra não percebe que está cantando. Tem havido tentativas de produzir uma fala que seja só letra, sem a música. A ciência e a filosofia têm-se esforçado por esse ideal- uma fala da qual o corpo do que fala esteja ausente. Fala sem alma, só informação. A voz metálica, monótona, indiferente, de robô, dos serviços de alto-falantes dos aeroportos é uma expressão sensível desse ideal desumano. Você poderia imaginar um diálogo de amor com essa fala? Não existe voz humana que não tenha música. Aí Fernando Pessoa diz que a letra não tem importância. Não é nela que se encontra aquilo que importa escutar. Pede até ao poeta que pare de falar porque a fala dele atrapalha ouvir a melodia ... Esse é o absurdo segredo da escuta: é preciso não escutar o que se diz para se poder ouvir o que ficou não-dito, a música. É na música que mora a verdade daquele que fala.Assim, se você quiser ouvir bem, não preste muita atenção na letra. Esqueça as lições da hermenêutica, a ciência da interpretação dos sentidos. Aprenda a sentir a música. Todos os tipos de música, do tam-tam dos tambores a Boulez. Porque o que os compositores fizeram foi só fazer tocar em instrumentos aquilo que era tocado pelo corpo. Parafraseando Uexküll: "Todo corpo é uma melodia que se toca." Seria bom se, nos cursos de psicologia, se lesse menos livros e se ouvisse mais música.

Por Rubem Alves

Escutatória


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma”.

Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.

Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios.

Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem.

Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades.

Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado”.

Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou”.

Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou”. E assim vai a reunião.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.
Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa.

No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.
Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.




Rubem Alves